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História

O primeiro escravizado negro do Canadá

Embora pouco comentada, a escravidão no Canadá esteve presente desde seus primórdios. Conheça a história de Olivier, o primeiro escravizado negro do Canadá.

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Ilustração representando Olivier Le Jeune, o primeiro escravizado negro do Canadá. Ilustração por Malcom Costa. Todos os Direitos Reservados Québec em Foco.

Talvez você saiba, talvez não, mas um século antes da Bataille de Plaines d’Abraham, a cidade de Québec já havia sido capturada uma primeira vez pelos ingleses, tornando-se uma colônia do Império Britânico. Isso ocorreu em 1629, e o chefe da expedição foi David Kirke, nascido na França, de pai inglês e mãe francesa.

Após os ingleses apoderarem-se de Québec, Kirke trouxe para a Nova França (Nouvelle France) uma criança negra escravizada de cerca de 6 anos. O menino era provavelmente originário de Madagascar ou da Guiana. Encontramos na Encyclopédie Canadienne a informação de que Kirke o vendeu quando, dois anos mais tarde, em 1632, decidiu retornar para a Inglaterra. O ‘comprador’ fora um francês chamado Olivier Le Baillif. O preço de venda foi de 50 écus, ou 6 meses de salário de um profissional. Essa é a primeira venda registrada de um ser humano, pelo menos oficialmente, na Nova França.

Olivier Le Jeune

Logo em seguida, o menino foi “repassado” ao casal Guillaume Couillard e Guillemete Hébert. No entanto, não se sabe se ele foi revendido ou simplesmente dado à Guillaume.  Em 14 de maio de 1633, ele é batizado e recebe o nome de Olivier Le Jeune. O nome “Le Jeune” é dado em homenagem ao seu tutor religioso, o padre jesuíta Paul Le Jeune. Talvez nunca saibamos o nome verdadeiro de Olivier. Sobre seu batismo católico, lemos o seguinte no diário do padre Paul:

“Guillemette Hébert … perguntou-lhe se ele queria se tornar cristão e ser batizado, para que ele pudesse ser como nós e ele nos disse que sim; mas ele também nos perguntou se nós iríamos lhe esfolar vivo durante a cerimônia do batismo … Quando ele nos viu rir, ele respondeu inocentemente: ‘vocês dizem que através do batismo eu me tornarei como vocês: eu sou negro e vocês são brancos, então vocês deverão me esfolar para que eu me torne como vocês`. Nós começamos a rir muito; vendo que não era isso, ele também começou a rir.”

Em 1638, então com cerca de 15 anos, Olivier é acusado e condenado (não me admiraria se injustamente) a um dia na prisão por ter supostamente divulgado (ou apenas repassado) rumores a respeito de uma alta traição de Nicolas Marsolet, um intérprete de Samuel de Champlain.  Verdade ou mentira, o que se sabe, com certeza, é que Olivier tornou-se o primeiro negro e o primeiro menor de idade a ser aprisionado em Québec.

Em 1654, Le Jeune morre. Não sabemos a data ao certo, mas seu enterro foi realizado no dia 10 de maio daquele mesmo ano. O documento de sua morte o categorizava como “doméstico”, termo usado nessa época para designar os escravizados. Segundo a Enciclopédia Canadense:

Retrato de olivier le jeune feito sob encomenda para o québec em foco. Artista: malcom costa. todos os direitos reservados.

“os historiadores não sabem se, ao morrer, Olivier Le Jeune era ainda um escravo … ou um homem livre…”.

Retrato de olivier le jeune feito sob encomenda para o québec em foco. Artista: malcom costa. todos os direitos reservados.

Homenagem da Cidade de Québec

Em 10 de maio de 2021, a cidade de Québec instalou uma placa comemorativa em homenagem a Olivier Le Jeune. Ela está afixada no pátio interior do Seminário de Québec, local da antiga morada de Guillaume Couillard.

A escravidão no Canadá

A escravidão no Canadá é um assunto extenso, denso e que exige muita responsabilidade e pesquisa. O Québec em Foco fará outro artigo sobre o tema no futuro. Por hora, os parágrafos abaixo trazem o mínimo que você precisa saber sobre a escravidão na Nova França e no restante do Canadá.

Em 1709, o governo da Nova França autorizou os colonos a comprar escravos indígenas (das primeiras nações, ou autochtones) e africanos. E em 1790, já sob o jugo do Império Britânico, foi autorizado aos colonos ingleses trazer seus escravos quando se instalassem em terras canadenses. É digno de nota que nenhuma lei tornava a escravidão legal, porém, os tribunais e os governos a permitiram fazendo, por consequência, que os contratos de compra e venda de escravos fossem reconhecidos.

Além de terem sido os primeiros, os autochtones também constituíam mais da metade de todos os escravizados no Canadá.

O Canadá (incluída a Nova França) escravizou relativamente poucas pessoas, principalmente se compararmos com o regime escravocrata do Brasil (cerca de 4 milhões), Estados Unidos e de outras colônias europeias. Os historiadores estimam em pouco mais de 4.000 escravizados no Canadá durante o período de 1628 e 1834. Desses, cerca de 2.700 eram autochtones e pelo menos 1.433 eram negros. Essa estimativa leva em conta a escravidão nas províncias do Québec, de Ontário, da Nova Escócia e das províncias do atlântico.

O “pequeno” número de escravizados se deve à bondade, à humanidade e ao sentimento de justiça dos franceses e dos britânicos que não concordavam com aquela atrocidade. Espero que você não tenha acreditado nisso. De bonzinhos eles não tinham nada. Basta ver a situação de outras colônias francesas e britânicas na mesma época.

Na verdade, o que explica o baixo número de escravizados no Canadá é o tipo da economia e a rudeza de seu clima. Diferentemente de colônias mais ao sul, a agricultura não era a principal atividade econômica do país. Durante mais de um século, a economia local girou em torno do comércio de peles. Como essa era uma atividade que demandava pouca mão de obra, não era vantajoso para os colonos manterem muitos escravizados. Até porquê, durante praticamente a metade do ano, o clima extremamente frio inviabilizava as plantações.

No que trabalhavam os escravizados?

Arar e limpar a terra, cortar lenha, construir casas, cuidar dos animais e das plantações na metade do ano em que isso era possível. Nas casas dos brancos, os escravizados trabalhavam na cozinha, limpeza da casa, jardins e cuidados das crianças. Tudo isso, claro, sem nenhum salário e não raro em péssimas condições.

Alguns dos homens trabalharam como comerciantes de peles, mineiros, marinheiros, caçadores e pescadores. As mulheres se ocupavam da lavagem, confecção de vestimentas, velas e sabão.

A escravidão no Canadá somente começou a ser combatida no final dos anos 1790. Em 1793, uma lei visando limitar a escravidão no Alto Canadá (Haut-Canada) foi adotada, tornando ilegal trazer novos escravos para a província. No entanto, ainda era legal a sua comercialização dentro da mesma.

A lei previa que as crianças nascidas a partir de 1793 de pais escravizados seriam libertas ao completarem 25 anos de idade e que seus descendentes já nasceriam livres. Por fim, ela estabelecia que os “donos” de escravos deveriam fornecer roupas e comida aos libertos.

Finalmente, em 1˚ de agosto de 1834, entra em vigor uma lei aprovada um ano antes pelo parlamento britânico através da qual a escravidão estava oficialmente proibida em todas as suas colônias, o que obviamente incluía o Canadá.

Fontes e Referências

William é brasileiro, nascido na cidade de Feliz, no interior do Rio Grande do Sul. Mora em Québec desde 2019 e é um aficcionado por história. Com formação na área de tecnologia e de línguas antigas, é o apresentador do canal Québec em Foco no YouTube e também do Café com História do podcast Conexão Québec.

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