Cultura
Micos de Imigrante: o primeiro estabaco a gente nunca esquece
Tudo o que você sempre quis saber sobre as histórias que todo imigrante raiz passa, mas que nega até morrer. No segundo artigo, conheça a história de um imigrante brasileiro colocando pela primeira vez o nariz para fora nas terras gélidas de Québec.
Tudo o que você sempre quis saber sobre as histórias que todo imigrante raiz passa, mas que nega até a morte. Neste segundo artigo, conheça a história de um imigrante brasileiro congelando pela primeira vez o nariz para fora de sua maison em Québec.
Você, caro-a leitor-a, conhece o Québec? Não? E a Sibéria? Também não?
Então já te digo, é tudo igualzinho, tá?
– Il fait frette en ostie!
E vai por mim, “manteau” em Québec é mais útil e importante do que leite condensado pro Exército tupiniquim.
O imigrante, pra salvar uns reais desvalorizados, comprou uma passagem só de ida pro Québec. E pelo Copa.
Umas 49 horas e três escalas depois, desembarca finalmente no aeroporto de Montréal. Em pleno fevereiro.
Ah, não te falei que a barganha da passagem só valia pro inverno? Foi mal, hein!
Pois então, o danado sai do verão infernal do Brasil pra chegar no inverno québécois que até a Frozen sente frio.
Mas, claro, ele estava bem equipado, com um pulôver, uma touca e um par de meias, tudo de lã e comprados numa ponta de estoque de Petrópolis. Luvas? Ganhou da Tia Marly, feita em tricô e com o seu nomezinho devidamente tricotado. Uma g r a c i n h a de linda.
Pela janela do avião viu o sol refletido naquela imensidão de brancura que só o OMO Resolve.
Sabe aquele cobertozinho que dão no avião? Pois então, pegou um. Quando passou pela primeira classe, surrupiou outro.
– Faz parte deste bilhete caro que paguei, tá?, pensou se auto-justificando o espertalhão brazuca.
Por sorte, os brasileiros que o esperavam no aeroporto, vendo sair aquela figura (mal) vestida com uma roupa típica de inverno no Rio de Janeiro, se entreolharam e comentaram com ele:
– Espere a gente aqui, tá? Vamos rapidinho guardar tudo no carro e já voltamos.
– Quê isso, eu ajudo…
– Não! [um não daqueles quase dando ordem, sabe como?] Fique apreciando as suas primeiras horas em Québec.
O imigrante preferiu não contesta e ficou ali, observando o entrar e sair ininterrupto das pessoas.
– Falam tanto de frio, que é de aleijar…gente cheia de mimimi. Tô super de boa! Ah, primeiro mundo, até o ar é diferente!
Pouco tempo depois, os amigos chegaram e o imigrante embarcou no carro sem sequer resvalar no ‘calorzinho’ do sol québeco de fevereiro. No caminho, atenciosos e preocupados, foram preparando a alma daquele desinformado imigrante para as agruras do inverno québecois.
Ele pensou, mas não falou:
– Que brasileirada mais fraca. Fiz sobrevivência na selva, passei dois dias dividindo meia lata de sardinha com mais três comparsas. Uma vez PQD, sempre PQD. Soldado Cunha, 2687, Vº Batalhão da Infantaria, Turma de 87. Forjado em ferro e fogo….hupa, hupa, PQD, hupa, hupa, PQD…[um belo sorriso estampava a barbeada carinha de quem fora criado por avó e jogava bolinha de gude no carpete].
Quando foram deixar o imigrante no 2 ½, alugado ainda do Brasil, entraram pelo estacionamento coberto do prédio. Os amigos tinham feito gentilmente as primeiras compras e uma vez mais comentaram que ele precisaria de umas roupas mais adaptadas ao inverno local. Inclusive se ofereceram pra ir de companhia no dia seguinte.
– Ah, fiquem tranquilos. Tô bem assim. Depois, com calma, compro algo.
E mostrou, como se fossem escalpos de guerra, os dois cobertores surrupiados do avião.
– Veio de brinde com o preço da passagem. [Só ele riu].
Percebendo que a ficha do imigrante não havia caído, ao se despedirem, os amigos “esqueceram” um “manteau” e um par de “mitaines”. Mas não deu nem 5 minutos e o abestado os percebe no sofá.
– Eitcha, eles vão morrer de frio assim.
Olhou pela janela e viu o carro deles saindo lentamente do estacionamento. Como era térreo, não pensou duas vezes, saiu correndo do jeito que estava: de meias e com uma Hering surrada [já sem o casaco petropolitano].
Quando abriu a primeira porta do hall de entrada, já achou esquisito:
– Duas portas? Ué, não dizem que aqui é seguro…sei, sei…que exagero.
…e escancarando a segunda porta que dava pra fora do prédio, abriu a bocarra pra chamar pelos ‘distraídos’ amigos…
VRUMMMM…tomou uma lapada de vento frio na cara que até engasgou. Os dentes, nos 3 segundos que ficaram expostos com boca aberta, congelaram. O cérebro, em modo desespero, mandou uma mensagem: – Volteeeeeee, entraaaaa…
ZUMMMM…PÁÁÁÁÁ, TUMMMM…tarde demais…o escorregão fez o bumbunzinho do imigrante, cuidado no PomPom do vovó, experimentar a dureza gélida de uma entrada de prédio devidamente congelada. As meias, ensopadas pelo que restara de água em sua forma líquida, anestesiaram seus “orteils”.
Não se deu ao trabalho de se levantar, engatinhando como se tivessem zumbis atrás de carne fresca, ops, congelada, ele passou pelas duas portas….
VRUMMMM…tomou outra lapada, só que agora do bafo quente do aquecimento do hall.
– PQD, PQP, PQP, PQP…
As duas próximas semanas passou quietinho em casa, tomando sopinha e acétaminophène do Costco levados pelos condoídos amigos [que, claro, gargalhavam por dentro].
O primeiro estabaco regado a resfriado québeco a gente nunca esquece.
Não deixe de conferir o artigo anterior de Micos de Imigrante!
Microdicionário de québequês
- – Il fait frette en ostie! Está fazendo frio para C… Ostie é literalmente uma hóstia, daquelas que o padre católico usa. Mas é usada como um palavrão aqui;
- Manteau: Casaco, mas digamos que em Québec ele tenha um sentido mais de urgência;
- Mitaine: É tipo uma luva, mas que não é uma luva, entendeu? Ela só tem lugar pro dedão, os demais 4 dedos, no caso do Molusco, 3, ficam todos juntinhos num único compartimento.
- 2 ½: É tipo um conjugadão ou studio. 3½ quer dizer que a casa tem um quarto, sala e cozinha (juntas), além de banheiro. 4½ é uma casa/apartamento de dois quartos… e assim por diante.
- (un) rhume: Um resfriado; se for mais forte será “une grippe”, e se for ainda mais forte… Em nome do Pai, do Filho…
- Orteils: Só pra complicar, são os “doigts” (dedos) dos pés.
Gabriela
08/11/2021 at 21:47
Estou rindo aqui de nervoso e já estou é com medo.????????????????????
Fábio De Almeida
09/11/2021 at 11:26
Olá, Gabriela, tudo bem?
Imigrante raiz paga mico ou mente que não paga, não tem jeito, né?
Muito obrigado por seu comentário, viu?
A+
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