Conecte-se com a gente

História

Primeiras Nações: os povos indígenas que viviam em Québec antes da chegada dos europeus

Jonas Moura

Publicado

em

Foto dentro de uma Maison Longue em Wendake, Québec. Créditos: William Zimmermann.
Foto dentro de uma Maison Longue em Wendake, Québec. Créditos: William Zimmermann.

Entenda como as tribos que viviam às margens e nos arredores do rio Saint Laurent estabeleceram relações comerciais e conflituosas com os colonizadores.

A história do Canadá, assim como a de todos os países das Américas, também revela a presença e a importância dos povos indígenas na formação social e no processo de construção histórica da nação canadense. E é por meio do reconhecimento da participação desses povos como atores sociais, que podemos compreender o passado a partir de uma visão plural e não somente eurocêntrica.  Um fato que reforça a relevância e a contribuição dos ameríndios na reprodução de tanta diversidade e riqueza cultural que, ao longo dos séculos, mantém-se presente na sociedade americana moderna.

De acordo com o jornalista e escritor Charles C. Mann, autor do livro 1491, em toda a América, antes da chegada dos europeus, existiam entre 40 e 60 milhões de indígenas distribuídos pela faixa territorial do continente. Essas nações de povos originários formavam sociedades sofisticadas e falavam cerca de 1.200 idiomas, organizados em 120 grupos linguísticos.

Segundo algumas fontes, na América do Norte, viviam cinco milhões de pessoas. Esses nativos ocupavam os territórios que hoje pertencem aos Estados Unidos, México e Canadá. Eles se organizavam em comunidades que, comparadas aos povos da América Central, podiam ser consideradas mais simples e homogêneas. 

O povo Haudenosaunee, por exemplo, era formado pelas nações indígenas Seneca, Cayuga, Onondaga, Mohawk e Tuscarora. Um grande grupo que habitavam as áreas que, atualmente, são parte de Ontário e dos estados de Nova York e Pensilvânia, nos EUA.

Já no leste, sudeste e meio-oeste dos Estados Unidos até as fronteiras com o Canadá viviam as culturas mississipianas. Esses povos espalhavam-se ao longo do Rio Mississipi ocupando um território de 1,7 milhões de quilômetros. Os seus grupos se organizavam em cidades, compartilhando práticas religiosas semelhantes, costumes e a mesma compreensão do mundo.

“Os europeus encontraram povos que não tinham medo de seus governos, que eram autônomos e que riam da ideia de que a nobreza era hereditária. Essas foram lições importantes que aprenderam com eles”. 

– Charles C. Mann, BBC Brasil.

Às margens do Saint Laurent

Mas afinal, quais eram os povos que ocupavam o Québec de antigamente? Quando Samuel de Champlain chegou à  região, em 3 de julho de 1603, para explorar os territórios da Nouvelle France, encontrou algumas tribos que viviam às margens do rio Saint Laurent. Esses nativos eram formados pelos Montagnais, Algonquin, que tinham em comum a língua algonquina, e os Hurons , que falavam uma língua iroquesa.

Também nas redondezas desse território estavam os iroqueses, um povo da  Confederação Haudenosaunee  e que era inimigo dos indígenas que estabeleceram relações com Champlain e os franceses. Inclusive, um dos diversos confrontos entre eles recebeu o nome de Bataille du lac Champlain, uma batalha ocorrida em 1609 e que fortaleceu a parceria entre Champlain e os seus aliados.

A pintura mostra a Bataille du Lac Champlain, com Samuel de Champlain no meio cercado por diversos indígenas a beira do lago.
Bataille du lac Champlain

Vale ressaltar que a aliança estabelecida entre os franceses e os povos originários foi além do apoio bélico. Os Montagnais (Innu), Algonquin e Hurons estabeleceram uma relação comercial com os europeus. Desse modo, viabilizaram a exportação de peles de animais para fora do continente, transformando esse tipo de comércio na principal atividade local. E assim, as peles foram vendidas por altos preços à Europa.

“Um dos selvagens que trouxemos começou a fazer seu discurso sobre a boa recepção que eles receberam do rei e o bom tratamento que receberam na França. E que eles deveriam ter certeza de que Sua Majestade lhes desejava bem e desejava povoar suas terras e fazer as pazes com seus inimigos, que são os iroqueses, ou enviar-lhes forças para derrotá-los”.

– Samuel de Champlain, Récits de Voyages em Nouvelle-France (1603-1632).

A proximidade com os “sauvages” (selvagens era o termo usado pelos primeiros exploradores para se referir aos povos originários das Américas) permitiu que os exploradores observassem de perto os seus costumes e comportamentos. Embora comum na época, a nomenclatura desapropriada persistia nos relatos de Samuel de Champlain. Na obra Récits de Voyages em Nouvelle-France (1603-1632), o desbravador francês e fundador de Québec, descreve com detalhes os hábitos, rituais e os“tabagies” (banquetes tribais, conforme descrito na obra Récits de Voyages em Nouvelle-France).

Champlain também relata a maneira como os indígenas celebravam as suas vitórias de guerra e confirma a rivalidade entre os Montagnais, Etchemins e Algonquins contra os Iroquois. Detalha as vestimentas feitas com pele, as pinturas corporais e os colares produzidos com pelo de porco espinho. Segundo os relatos do francês, o êxito contra os inimigos era comemorado com danças exóticas e as mulheres tiravam suas roupas, enquanto todos entoavam gritos e cantos.

“Depois que ele terminou seu discurso, saímos de sua cabine e eles começaram a fazer sua tabagie ou banquete, que eles fazem com carne de alce [“orignal”], que é como [de] carne bovina, de urso, de foca e [de] castor, que são as carnes mais comuns que eles têm, e caça em grande quantidade. Eles tinham oito ou dez caldeirões cheios de carne no meio da dita cabana e estavam distantes uns dos outros cerca de seis passos, e cada um tinha seu fogo. Eles sentam-se em ambos os lados, como eu disse acima, cada um com sua tigela de casca de árvore. E quando a carne está cozida, há quem a reparte por todos nas ditas tigelas, onde comem muito sujos, porque, quando têm as mãos engorduradas, esfregam-nas nos cabelos ou nos pelos dos seus cães, que têm em abundância para a caça”.

– Samuel de Champlain, Récits de Voyages em Nouvelle-France (1603-1632).

Os iroquois (iroqueses)

Falando a língua iroquesa, os povos Iroquois, ou iroqueses, viviam nos arredores dos lagos Erie e Huron e no sul de Ontário e Québec. Divididos em clãs, sobreviviam da caça e da pesca, mas também, eram capazes de produzir plantações com a intenção de garantir os próprios alimentos como feijão, milho e abóbora.

Para os iroqueses, a guerra era importante. Não à toa, durante anos, envolveram-se em muitos conflitos com as tribos inimigas apoiadas pelos europeus. Principalmente, no período em que a confederação iroquesa era reinada por um cacique chamado Todadaho.  Segundo a tradição oral iroquesa, Todadaho não só via e sabia de todas as coisas mas também, ao vencer as batalhas, comia os crânios dos seus inimigos.

A chegada dos europeus motivou esses embates com outras tribos. Interessados nos produtos fornecidos pelos homens não-americanos, os iroqueses começaram a guerrear para ter acesso aos objetos de metais e tecido. Assim, enfrentaram os europeus e ainda aprenderam a usar novas táticas de guerra, lutando não apenas por vingança ou prestígio, mas por objetivos econômicos e materiais.

O resultado dessa relação conturbada foi à morte de centenas de pessoas e à infestação de doenças que antes não eram comuns entres os povos indígenas. De acordo com dados históricos, somente na década de  1660, entre 1.200 e 2000 iroqueses foram mortos nos combates e contaminados com infecções europeias.

No entanto, nem sempre o contato com os europeus foi hostil. Na primeira metade do século XVII, os povos iroqueses se reconciliaram com os colonizadores, estabelecendo uma relação neutra que perdurou até a Guerra Franco-Indígena, em 1754. Um conflito que segmentou a liga iroquesa e foi seguido da Guerra da Independência dos Estados Unidos, fazendo com que cada nação da confederação optasse em apoiar lados diferentes.

Nações indígenas no Québec de hoje

O Québec abriga atualmente 11 nações indígenas, sendo 10 delas pertencentes às Premières Nations e uma composta pelos Inuit. Cada uma dessas nações possui sua própria língua, cultura e história, tendo vivido no território que hoje é o Québec por milênios. Juntas, essas populações representam pouco mais de 1% da população da província. As Premières Nations estão distribuídas em 41 comunidades espalhadas por todo o território, majoritariamente em reservas sob administração de conselhos de bande. Já os Inuit vivem no extremo norte, além do 55º paralelo, organizados em 14 vilarejos com estrutura municipal, conforme estipulado por convenções territoriais específicas.

Embora a maioria dos indígenas ainda resida em suas comunidades tradicionais — como reservas, estabelecimentos ou terras de categoria I —, muitos vivem hoje em contextos urbanos ou rurais fora dessas áreas. As terras indígenas reconhecidas somavam cerca de 14.786 km² em 1998, sendo 95% delas classificadas como terras convencionadas de categoria I, destinadas exclusivamente às nações indígenas. As demais são públicas, mas com direitos garantidos às populações nativas. As reservas são de jurisdição federal e administradas conforme a Loi sur les Indiens, enquanto os territórios inuit seguem um modelo municipal sob responsabilidade do governo do Québec.

Esse panorama ressalta a diversidade e a complexidade dos arranjos legais e sociais que envolvem as nações indígenas do Québec. Para conhecer melhor essas comunidades e seu modo de vida, o governo disponibiliza um mapa interativo com informações detalhadas sobre cada nação e suas respectivas localidades.

As 11 nações indígenas no Québec atual são:

  • Abénaquis (Abénakis)
  • Algonquins (Anichinabés)
  • Attikameks (Atikamekw)
  • Cris (Eeyou)
  • Hurons-Wendats
  • Naskapis
  • Innus
  • Micmacs (Mi’gmaq)
  • Mohawks
  • Wolastoqiyik (Malécites)
  • Inuit
As 11 Nações Autóctones (Indígenas) no Québec atual. Print screen do mapa disponível no site: https://experience.arcgis.com/experience/ef1b4393d43a4a76a2b8655f57a8f878. Maio de 2025.

21 de junho

Hoje em dia, no Canadá, um milhão de pessoas se identifica como povos das primeiras nações, Inuit ou Métis. Esse total representa 5% da população canadense.  Além disso, no país, os indígenas são amparados por uma lei que os identifica e oferece direitos específicos. Por meio de amparos governamentais, mais de 600 grupos de indígenas vivem em 2.250 reservas ambientais.

Em reconhecimento à herança cultural e histórica desses povos, no dia 21 de junho é celebrado o dia Dia Nacional dos Povos Indígenas no Canadá ou “Dia Nacional dos Aborígenes”. A celebração foi instituída em 1996 pelo, então, Governador Geral: Romeo LeBlanc. Na época, ele consultou e recebeu o apoio de diversos grupos indígenas canadenses.


Quer saber mais sobre a história do Québec? Assine nossa newsletter semanal e não perca os artigos do Québec em Foco.

Referências Bibliográficas:

 

O início das relações franco-indígenas no Québec, Québec em Foco.  Acessado em 5 de maio de 2025. Disponível em: https://www.quebecemfoco.com/historia/o-inicio-das-relacoes-franco-indigenas-no-quebec/

Como realmente era a América antes da chegada de Colombo?, BBC Brasil. Acessado em 5 de maio de 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-36af0f00-a464-4e05-8abc-0af6f62c5e3f#title_1

CHAMPLAIN, Samuel de. Récits de Voyages em Nouvelle-France (1603-1632), 34-45 p.

Iroquain People. Britannica. Acessado em 7 de maio de 2025. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Iroquoian-peoples

Povos indígenas. Britannica. Acessado em 7 de maio de 2025. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Canada/Indigenous-peoples

Entenda o significado do Dia Nacional dos Povos Indígenas no Canadá,  Jornal Brasil Vancouver. Acessado em 7 de maio de 2025. Disponível em: https://brasilvancouver.com/entenda-significado-dia-nacional-povos-indigenas-canada/


Jonas Moura é brasileiro, nascido em Recife, Pernambuco. Formado em Comunicação Social e graduando em História, atualmente, mora na capital do Rio de Janeiro. Além de jornalista, é autor do livro “Havana Viva” e roteirista. Escreve para registrar em palavras o mundo ao seu redor.

Clique aqui para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Newsletter

INSCREVA-SE EM NOSSA NEWSLETTER SEMANAL

Inscreva-se para receber um e-mail semanal com os últimos artigos do Québec em Foco. É de graça!
Não se preocupe, não vamos encher sua caixa de entrada com coisas inúteis.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Anúncio

Categorias

Reserve hotéis no Booking.com com esse link e tenha 20% de desconto até 30 de setembro de 2025