História
Qual é a origem do slogan “Je me souviens” de Québec?
Ao chegar na cidade de Québec, as placas dos carros estão com a frase: “Je me souviens”. Qual é a origem dessa frase?
Ao chegar no Québec (Quebeque), Canadá, por onde quer que você olhe nas ruas, as placas dos carros matriculados na Província estão com um slogan: “Je me souviens”, ou, “eu me lembro”, em português. Qual é a origem dessa frase?
Este artigo foi publicado originalmente em 12 de maio de 2021. Esta é uma versão revisada e ampliada do artigo original.
Confusão
Se você perguntar a três québécois (tal como na velha piada judaica) o que significa a famosa frase “Je me souviens”, prepare-se: você receberá quatro respostas diferentes. Sim, quatro. Eles são tão criativos quanto as versões de poutine. Uns vão jurar que tem a ver com a Batalha das Planícies de Abraham, em 1759, quando os britânicos tomaram Québec dos franceses. Outros dirão que a frase é uma espécie de grito de guerra do plebiscito de 1995, quando Québec quase se separou do Canadá. Será?
A verdade é que, em ambas as versões, muita gente associa o “Je me souviens” a um certo ressentimento histórico. A ideia de que os francófonos guardam mágoa dos “ingleses” por terem conquistado a região à força. Vingança, raiva, rancor… parece até novela das seis. Mas calma: essa história é mais lenda do que fato.
E afinal, qual é a origem (de verdade)?
A frase nasceu lá no final dos anos 1800, bem longe dos campos de batalha. O cenário foi outro: a construção do Parlamento de Québec (oficialmente, Assemblée nationale du Québec). E adivinha? É exatamente ali, acima da porta principal, entalhada no brasão de armas, que você encontra pela primeira vez o famoso “Je me souviens”.
Não foi pensado como uma cutucada nos ingleses, nem como manifesto separatista. Era — e ainda é — uma forma de dizer: “eu me lembro das minhas raízes, da nossa história, da cultura que nos define”. Bem mais poético do que parece, né?

Quem teve a ideia de imortalizar o “Je me souviens” foi o arquiteto Eugène-Étienne Taché, responsável pelo projeto da Assemblée nationale du Québec. Foi ele quem mandou esculpir a frase no brasão do prédio, bem acima da porta principal, como quem deixa um recado no portão de casa: “Não esqueça de onde você veio”.
O detalhe curioso é que Eugène, esse homem de visão (mas sem pressa), não deixou um bilhetinho explicando o que queria dizer com a frase. Nenhuma carta, nenhuma ata, nenhum post no Facebook da época. Resultado? Com o passar dos anos, a falta de explicação oficial deu espaço para que surgissem teorias mirabolantes e lendas urbanas sobre o real significado do lema.

Mas nem tudo ficou perdido! Sabemos, através de documentos e estudos sobre a obra de Taché, que ele se inspirou no Panthéon de Paris ao projetar a fachada da Assembleia Nacional. Quem já viu o Panthéon sabe: ele é um verdadeiro “hall da fama” da história francesa, cheio de estátuas de personagens importantes.
Taché quis fazer algo parecido para Québec. Por isso, a fachada do Parlamento está recheada de estátuas de figuras marcantes da história da província — exploradores, governadores, missionários, até guerreiros indígenas. A ideia era simples e bonita: prestar homenagem a todos que ajudaram a construir a identidade de Québec.
E aí entra o famoso “Je me souviens”. Não como um “eu me vingo”, mas sim como um “eu me lembro da minha história, das minhas raízes e daqueles que vieram antes de mim”. Um lembrete, elegante e sóbrio, para que ninguém passasse batido pela própria herança cultural.


Uma lenda urbana – Lys vs Rosa
No final dos anos 1970, o famoso “Je me souviens” saiu da fachada da Assembleia e foi parar onde todo mundo veria: nas placas dos carros de Québec. Ele substituiu o antigo e simpático slogan turístico “La belle province”. E foi aí que a coisa ganhou ainda mais versões do “telefone sem fio” histórico.
Com a frase agora rodando o Canadá inteiro em para-choques, mais teorias sobre sua origem começaram a aparecer — algumas criativas, outras completamente viajadas.
Em 1978, por exemplo, a neta de Eugène Taché resolveu entrar na conversa. Ela publicou uma carta aberta no jornal “Montréal Star” (um jornal que já virou peça de museu) dizendo que o “Je me souviens” era, na verdade, só a primeira linha de um poema maior:
“Je me souviens que né sous le lys, je croîs sous la rose.”
(Eu me lembro que, nascido sob a flor-de-lis, eu cresço sob a rosa.)
Bonito, né? Segundo ela, Taché queria simbolizar, com essa frase, a união das duas heranças de Québec:
- A flor-de-lis, símbolo da monarquia francesa (as origens da Nova França);
- A rosa, símbolo da monarquia inglesa (os novos “donos” depois da conquista).
A ideia era mostrar que Québec foi moldado pelas duas culturas, mesmo que na marra.
Mas… tem um detalhe.
Hoje se sabe que esse poema não foi criado para o Parlamento, nem para o lema da província. Na verdade, era parte de um projeto separado de Taché, que visava erguer uma estátua comemorativa dos 300 anos de Québec, em 1908. Spoiler:
essa estátua nunca saiu do papel. Mas a frase sobreviveu, sendo gravada em moedas comemorativas da época (olha ela aí dando um jeito de ser lembrada de outro jeito!).
Ou seja, por mais poético que fosse, não tem ligação direta com o “Je me souviens” do Parlamento.

Resumindo
Resumindo, a história da frase “Je me souviens” é simples – uma iniciativa individual do arquiteto da Assembleia Nacional de Québec. Ele simplesmente estava convidando a todos que vissem o parlamento a se lembrar de sua história e daqueles que a fizeram.
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E agora que você já sabe que “Je me souviens” não é sobre vingança, mas sobre memória e identidade, que tal ajudar mais gente a entender (de verdade) esse pedacinho tão importante da cultura québécoise?
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Fontes e Referências
- http://www.ameriquefrancaise.org/fr/article-518/La_devise_qu%C3%A9b%C3%A9coise_%C2%ABJe_me_souviens%C2%BB.html#.X02cPWdKhhE – Acesso em 31/08/2020
- https://www.erudit.org/fr/revues/archives/2019-v48-n1-archives04662/1060817ar/ – Acesso em 31/08/2020
- https://www.youtube.com/watch?v=38CD1CtJ4UU – je me souviens, la devise du Québec – Acesso em 31/08/2020 – Historiador Laurent Turcot