Conecte-se com a gente

História

Os órfãos de Duplessis e um lado sombrio do passado de Québec

Jonas Moura

Publicado

em

Dormitório do orfanato Notre-Dame-de-la-Merci, Huberdeau perto do ano de 1941. O orfanato foi um dos implicados no episódio dos Órfãos de Duplessis.
Dormitório do orfanato Notre-Dame-de-la-Merci, Huberdeau perto do ano de 1941. O orfanato foi um dos implicados no episódio dos Órfãos de Duplessis. Por La Presse — Bibliothèque et archives nationales du Québec, Fonds La Presse, P833,S3,D722, Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=149596672

Entre 1930 e 1964, milhares de crianças de Québec tiveram a guarda confiada ao Estado e foram abusadas e negligenciadas em instituições religiosas.

A história do Québec é rica em fatos históricos e políticos. E embora o Canadá seja um exemplo de uma sociedade pacífica e moderna, já houve períodos em que o povo canadense viveu tempos sombrios. Um passado em que a religião e o estado eram quase indissociáveis. Se hoje o país preserva uma democracia sólida e um estado laico é porque aprendeu com os próprios erros a conviver com o multiculturalismo e a diversidade.

“Cada vez que houve uma tentativa da Igreja católica de exercer um poder indevido sobre os indivíduos no Canadá, as sentenças da Suprema Corte sempre fizeram recordar que, em nome da igualdade, o Estado devia ser neutro.”Micheline Milot durante uma conferência em Buenos Aires

O episódio dos Órfãos de Duplessis é um bom exemplo da falta de limites entre o estado e a igreja no Canadá. Em nome de uma “aliança sagrada”, nos seus dois mandatos, Maurice Duplessis, então Primeiro-Ministro de Québec, entregou a gestão da saúde da cidade à igreja católica. Contudo, o resultado foi catastrófico, vitimando milhares de crianças que eram abusadas e negligenciadas dentro de instituições financiadas pelo governo e pela iniciativa privada.

Quem foi Maurice Duplessis?

Maurice Duplessis era filho de Nérée Le Noblet Duplessis e Berthe Genest. O pai foi um deputado católico e conservador em Trois-Rivières (1886-1900) e a mãe uma descendente de irlandeses e escoceses. Em 1915, antes de ser nomeado juiz do tribunal superior, Duplessis já havia tentado uma candidatura pelo Partido Conservador Federal. No entanto, não conseguiu ser eleito.

Maurice Duplessis nas eleições de 1952. Autor desconhecido (Montreal Star Publishing Company) — Bibliothèque et Archives Canada ne permet pas la distribution libre de ces documents encore assujettis aux droits d’auteurs. Voir Images provenant de Bibliothèque et Archives Canada., Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1058026

Duplessis estudou no Collège Notre-Dame de Montréal e, em 1913, se formou em direito pela Université Laval. No início da sua carreira política, apesar de ter perdido uma eleição provincial, em 1923, desenvolveu uma advocacia popular bem-sucedida em Trois-Rivières e, em 1927, foi eleito para magistratura.

Já em 1933, Maurice se consagrou como líder do Partido Conservador de Québec, cortejando políticos nacionalistas e reformistas que estavam decepcionados com o governo liberal e ultraconservador de Louis-Alexandre Taschereau. Foi com esse apoio que ele fundou o movimento Action liberále nationale, culminando com a formação da União Nacional.

Contudo, em 1935, Louis-Alexandre Taschereau foi reeleito. Então, Duplessis entrou em ação e, com o objetivo de derrotar o seu opositor, expôs os esquemas de corrupção do regime liberal para a Comissão de Contas Públicas. O resultado foi à expulsão de Taschereau do governo e uma vitória gloriosa de Duplessis em agosto de 1936.

A partir daí, Maurice Duplessis governou como primeiro-ministro de Québec em dois mandatos. O primeiro governo ocorreu entre 1936 e 1939 e não foi considerado satisfatório. Nesse período, ele conseguiu realizar poucas coisas além da Comissão de Salários Justos, da assistência às mães carentes e pessoas cegas e o seu exitoso programa de crédito agrícola.

Artigos da época (e uma de suas biografias) falam de Duplessis como alguém que consumia bebida alcoólica em excesso e era visto como um solteirão entregue a luxúria. De fato ele nunca casou. Somado a essas questões pessoais, o Primeiro-Ministro cometeu o que para muitos foi um grande erro: em 1939, antecipou uma eleição para discutir a participação no esforço de guerra.

Essa ação gerou também uma crise no seu governo e alguns ministros federais de Québec ensaiaram uma renúncia, deixando Duplessis em uma situação desconfortável. Em paralelo, entre 1941 e 1942, a sua saúde acabou definhando e ele passou por uma longa internação para tratar de uma pneumonia e da diabetes. Após o susto, parou de beber definitivamente.

Entre 1942 e 1944, o governo de Québec ficou nas mãos da oposição.  Depois de dois anos, , Duplessis retornou ao poder após uma disputa acirrada contra Joseph-Adélard Godbout, líder do Partido Liberal de Québec, e o Bloc Populaire Canadien.  Posteriormente, a frente da União Nacional, ainda venceria as eleições de 1948, 1952 e 1956. Essas vitórias estenderam o seu segundo mandato por 15 anos, reforçando a ligação da autoridade do Estado de Québec com a Igreja Católica Romana.

Essa relação igreja-estado nos tempos de Duplessis pode ser bem compreendida por meio das obras dos seus principais biógrafos: Robert Rumilly e Conrad Black. Ambos revelam o respeito do Primeiro-Miistro pelas tradições franco-canadenses e a harmonia entre os bispos e o governo de Québec, que segundo relatos do próprio Duplesis: “Comiam na sua mão”

Os órfãos de Duplessis

Os mandatos de Maurice Duplessis não se resumem apenas aos órfãos  que foram vítimas da negligência do Estado durante a sua gestão. O famoso Primeiro-Ministro de Québec também promoveu feitos importantes como o aumento do salário mínimo da cidade, a construção de hospitais, rodovias, universidades e grandiosos projetos de usinas hidrelétricas.

Todavia, é inegável que esse episódio tenha deixado uma marca profunda não apenas sobre os governos de Duplessis, mas também, sobre a própria história social de Québec. Segundo o artigo Les ophelins de Duplessis, entre 1930 e 1964, milhares de crianças de Québec abandonadas pelos pais ou que, de alguma maneira, tiveram a guarda confiada ao Estado foram institucionalizadas em congregações católicas.

Essas crianças, que deveriam receber um cuidado digno, acabaram sendo submetidas a um regime severo e rudimentar. Não raro sofriam abusos sexuais e eram negligenciadas. Outras foram “diagnosticadas” com algum tipo de transtorno mental e, por isso, internadas em instituições psiquiátricas, orfanatos e internatos. Nesses locais, conviviam com pessoas que realmente tinham patologias psiquiátricas graves como esquizofrenia ou deficiência cognitiva. E, por meio de prescrição médica, recebiam tratamentos baseados em excesso de medicação, eletrochoque e isolamento social.

“Fui levado à clinica de Mont-Providence, cujo nome foi depois alterado para Rivière-des-Prairies. Estive lá por um tempo desde 1954 até 1961. Depois fui levado a um outro local ainda mais fechado da sociedade. Foi a clínica de Saint-Jean-de-Dieu, uma clínica psiquiátrica. Como nos tornamos adultos e começamos a reagir às coisa que eles faziam conosco, começamos a nos defender.” – Lucien Landry.

Não demorou e as crianças passaram a ser reconhecidas como “Os órfãos de Duplessis”. Isso porque o regime de Maurice Duplessis decidiu categorizá-las como possíveis doentes mentais. O Primeiro-Ministro de Québec e o seu partido político, o União Nacional, tinham uma visão divergente do governo federal sobre o papel do Estado – principalmente em relação às políticas sociais e a gestão da saúde pública.

Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo federal do Canadá era a favor de um intervencionismo político, firmando um compromisso entre a classe rica  e a classe média trabalhadora canadense em prol do bem-estar social e da saúde. Na contramão desse projeto, o governo de Duplessis em Québec assumiu uma posição não-intervencionista, fomentando a caridade privada e o liberalismo econômico.

Então, ao mesmo tempo em que o Canadá se desenvolvia a partir desse posicionamento, em Québec, Duplessis apoiava os interesses tradicionais dos proprietários de terra e da classe alta monopolista. Assim, para responder as necessidades da população nas questões de assistência social e saúde, o Primeiro-Ministro construiu o que foi chamado de Aliança Sagrada. Na prática, foi deixado nas mãos da Igreja Católica Romana a gestão de escolas, bem-estar social e a saúde.

O arcebispo Jean-Marie-Rodrigue Villeneuve é um nome recorrente e uma figura importante na construção dessa aliança. Em 1933, ele chefiava a igreja católica de Québec. Considerado um nacionalista, esteve ao lado de Duplessis na gestão da saúde local e no apoio aos esforços de guerra do Primeiro-Ministro contra os nazistas.

Cardinal Villeneuve. Por Jules-Ernest Livernois — Bibliothèque et Archives Canada ne permet pas la distribution libre de ces documents encore assujettis aux droits d’auteurs. Voir Images provenant de Bibliothèque et Archives Canada., Domaine public, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2521724

Segredos revelados

No início da década de 60, finalmente, a internação de crianças em instituições psiquiátricas cessou. Em 1961, veio à tona a primeira história sobre os casos sombrios de Québec. Em seu livro Les fous crient au secours (1961), o escritor Jean Charles Pagé evidenciou a situação das crianças internadas nos asilos, provocando a criação de uma comissão de inquérito sobre os fatos.

A mídia também teve um papel essencial na exposição das condições em que eram submetidas às crianças. Além dos livros, muitos casos foram levados para as telas das televisões canadenses. E o resultado do primeiro inquérito foi à publicação do Relatório da Comissão para o Estudo de Hospitais Psiquiátricos (Bédard, Lazure e Robert, 1962). Conhecido mundialmente como Relatório Bédard-Lazure, o documento denunciou as arbitrariedades e os diagnósticos errôneos que rotularam centenas de crianças como portadoras de retardo mental.

O escritor Jean-Guy Labrosse também descreveu os problemas enfrentados pelas crianças de Duplessis. Na sua obra Ma chienne de vie (1946), Labrosse narrou a situação delicada que os jovens encontravam quando saíam dessas instituições. Afinal, não tinham uma educação adequada e nenhum projeto de ressocialização. Após um hiato de silêncio sobre o assunto, em 1988, uma minissérie foi produzida pela Radio Canadá e trouxe o episódio novamente à discussão pública.

Comitê para Órfãos Institucionalizados de Duplessis

Em 1992, diante dos fatos já conhecidos, alguns órgãos se mobilizaram para uma ação coletiva contra o Estado. O objetivo era pleitear uma reparação pelos danos causados às crianças. Então, o advogado Robert Fauteaux reuniu uma equipe de juristas para viabilizar o processo judicial. O grupo identificou 1.800 órfãos que viviam em instituições de Québec e para representá-los criou o Comitê para Órfãos Institucionalizados de Duplessis (COOID).

Com a evolução dos trabalhos, a equipe precisou ser ampliada. Por isso, mais dois advogados, um psicólogo, um historiador e um sociólogo se juntaram ao comitê. A partir daí, foram feitas pesquisas em relação aos aspectos históricos e legais do caso, demonstrando o contexto social, religioso e econômico de como as coisas aconteceram. Bem como, comprovando que as crianças haviam sido submetidas a ações muito semelhantes.

Apesar dos esforços, um pedido de subsídio ao Fundo de Ação Coletiva foi rejeitado pelo tribunal. Na ocasião, para a justiça, os órfãos tinham sido vítimas de atos diferentes e individuais. Posteriormente, o Tribunal Superior de Québec arquivou o processo, deixando uma equipe de 20 pessoas e dois anos de trabalho sem opções na busca por uma reparação.

Ainda houve uma intervenção da Sûreté du Québec. De acordo com o artigo Les ophelins de Duplessis, algumas vítimas relataram que os investigadores estavam criando uma confusão em relação aos fatos. Além disso, os promotores públicos envolvidos na investigação se encontraram com várias crianças, ouviram elas, mas não tomaram nenhuma atitude. Eles alegaram que os órfãos não eram boas testemunhas e que muitos acusados eram idosos, influenciando a Coroa para que as acusações não dessem prosseguimento.

O contexto social da época não justifica que pessoas, na sequência de atestados médicos emitidos por razões financeiras e não médicas (subsídios obtidos), tenham sido internadas em asilos, nem justifica certos abusos. A sociedade atual tem a obrigação de reconhecer oficialmente os erros cometidos contra os seus cidadãos.” – Daniel Jacoby

Desse modo, o COOID teve que recorrer a Ouvidoria do Tribunal, que acabou realizando uma investigação paralela que se estendeu por seis meses. O resultado dessa investigação foi um relatório publicado em janeiro de 1997. Neste documento, foi recomendado que o Governo de Québec, a classe médica e as instituições religiosas pedissem desculpas públicas aos órfãos. Assim como as vítimas deveriam ser recompensadas financeiramente para cobrir as despesas com terapias.

Algum tempo depois, o relatório foi apresentado ao Comitê de Instituições da Assembleia Nacional, que é um órgão representado por 12 membros de todos os partidos políticos do Canadá. O documento foi aprovado unanimemente e, em 1999, o governo ofereceu uma quantia total de U$ 3 milhões que foi rejeitada.

Somente em 2001, o Governo de Québec apresentou um novo pedido de desculpas e um novo valor de indenização. Dessa vez, foi oferecido à quantia individual de CAD 10.000 e mais CAD 1.000 por ano de internação em asilos. O COOID aceitou a proposta e, com isso, 1.500 pessoas foram qualificadas para receber os valores. Em 2006, o Governo adicionou mais U$ 26 milhões ao que já havia sido acordado.

Esse episódio sombrio acabou ferindo a relação dos Québecois com a Igreja Católica e uma das suas conseqüências foi o afastamento de muitos cidadãos da religião. Assim, desde 1966, o catolicismo sofre com uma decadência crescente na província que vê as suas igrejas sendo esvaziadas. Para se ter uma ideia, nos últimos 15 anos, segundo dados do Instituto Plínio Correia de Oliveira, a diocese de Montréal vendeu 50 igrejas e prédios religiosos.

Cabe destacar que não foi apenas o caso dos Órfãos de Duplessis que contribuiu para essa quebra de paradigma. Outros fatores também influenciaram e estão influenciando mudanças comportamentais e religiosas entre os moradores de Québec.  E as respostas também podem estar em um passado não tão distante, mas essa é uma reflexão que podemos compreender em outro artigo.

Referências Bibliográficas

Como o Canadá aparta Igreja e Estado. GGN. Acesso em 12 de maio de 2025: https://jornalggn.com.br/religiao/como-o-canada-aparta-igreja-e-estado/

Os órfãos de Duplessis. Érudit. Acesso em 13 de maio de 2025: https://www.erudit.org/fr/revues/nps/2000-v13-n2-nps471/000817ar/

Órfãos de Duplessis: ‘Eles esperam que nós esqueçamos do que fez a Igreja Católica’. Sputnik Brasil. Acesso em 17 de maio 2025:https://noticiabrasil.net.br/20151225/Igreja-Catolica-orfaos-de-Duplessis-3165591.html

Órfãos de Duplessis . Canada´s Human Right. Acesso em 19 de maio de 2025: https://historyofrights.ca/encyclopaedia/main-events/duplessis-orphans/

Paradigma de um mundo que clama por um milagre. Instituto Plínio Correia de Oliveira. Acesso em 23 de maio de 2025: https://ipco.org.br/quebec-paradigma-de-um-mundo-que-clama-por-um-milagre-para-se-salvar/#:~:text=O%20estado%20do%20catolicismo%20em,semanal%2C%20hoje%20s%C3%A3o%204%25.

Jean-Marie-Rodrigue Villeneuve.  Diretório do Patrimônio Cultural de Québec. Acesso em 23 de maio de 2025:  https://www.patrimoine-culturel.gouv.qc.ca/rpcq/detail.do?methode=consulter&id=19907&type=pge


Jonas Moura é brasileiro, nascido em Recife, Pernambuco. Formado em Comunicação Social e graduando em História, atualmente, mora na capital do Rio de Janeiro. Além de jornalista, é autor do livro “Havana Viva” e roteirista. Escreve para registrar em palavras o mundo ao seu redor.

Clique aqui para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Newsletter

INSCREVA-SE EM NOSSA NEWSLETTER SEMANAL

Inscreva-se para receber um e-mail semanal com os últimos artigos do Québec em Foco. É de graça!
Não se preocupe, não vamos encher sua caixa de entrada com coisas inúteis.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Anúncio

Categorias

Reserve hotéis no Booking.com com esse link e tenha 20% de desconto até 30 de setembro de 2025